Papa: depois da pandemia, precisamos de novos olhos para olhar para a realidade
“Uma pedagogia para os olhos que muda nosso olhar míope, aproximando-o do próprio olhar de Deus”. Assim, o Papa retorna à chamada “catequese da humanidade”: o cinema. A ocasião é um novo livro escrito pelo monsenhor Dario Edoardo Viganò, vice-chanceler da Pontifícia Academia de Ciências e da Pontifícia Academia de Ciências Sociais. Intitulada “Lo sguardo: porta del cuore. Il neorealismo tra memoria e attualità” (O olhar: porta do coração. O neorrealismo entre memória e atualidade), lançada pela editora Effatà, a obra será apresentada na Embaixada da Itália junto à Santa Sé. As páginas se abrem com uma entrevista com o Papa Francisco, e leva a uma viagem “de memória e contemplação”. Como se estivesse folheando um álbum de recordações, o Santo Padre volta no tempo, até a infância na Argentina, quando com os pais ouvia óperas no rádio ou ia ver filmes nas salas cinematográficas do bairro onde morava, em Buenos Aires.
A catequese do olhar
Foi com os filmes que o Papa conheceu a autêntica história do neorrealismo, “entre os dez e doze anos, acho que vi todos os filmes com Anna Magnani e Aldo Fabrizi”. Filmes muito importantes que permitiram às crianças da época compreender em profundidade, além das histórias de migrantes, a grande tragédia da guerra mundial. Para o Papa, os filmes do neorrealismo formaram e ainda formam o coração, porque “nos ensinaram a olhar para a realidade com novos olhos”. Nas palavras do Sucessor de Pedro, é precisamente este olhar que é a ferramenta para enfrentar o flagelo da pandemia, que nos dias de hoje “parece multiplicar os fracassos da humanidade” e “gera preocupação, medo, desânimo: por esta razão precisamos de olhos capazes de perfurar a escuridão da noite”. E, neste sentido, o cinema também se torna uma esfera, um meio e uma oportunidade para uma “catequese do olhar”, porque precisamos de “uma pedagogia para nossos olhos que muitas vezes são incapazes de contemplar no meio da escuridão a ‘grande luz’ (Is 9,1) que Jesus traz”.
O cinema que pode nos ensinar a assistir
Para o Papa, o neorrealismo, ainda que conte o drama italiano depois da II Guerra Mundial, tem um valor atemporal. Daí sua reflexão sobre o olhar que se abre para a transcendência e o cinema que pode ensinar a olhar. “Como seria bonito – argumenta – redescobrir através do cinema a importância da educação ao olhar puro assim como o neorrealismo fez”. Ele cita especificamente o “A Estrada da Vida” de Fellini e “A Culpa dos Pais” de Vittorio De Sica. Evidencia que em “muitos filmes o olhar neorrealista tem sido o olhar das crianças sobre o mundo: um olhar puro, capaz de capturar tudo, um olhar claro através do qual podemos identificar imediata e claramente o bem e o mal”. Depois volta suas lembranças à sua viagem à ilha de Lesbos, na Grécia, aos olhos das crianças que vivem nos campos de refugiados: “Em muitas ocasiões e em muitos países diferentes, meus olhos encontraram os das crianças, pobres e ricas, saudáveis e doentes, alegres e sofredoras.
Ser vistos pelos olhos das crianças”, reitera, “é uma experiência que todos nós conhecemos, que nos toca ao fundo do coração e que também nos obriga a examinar nossas consciências”, então levanta a questão: “O que fazemos para que as crianças possam nos olhar com um sorriso e manter um olhar claro, cheio de confiança e esperança? O que fazemos para que esta luz não seja roubada deles, para que estes olhos não sejam perturbados e corrompidos”?
Um olhar que transforma a realidade
Em um mundo atravessado pela mídia digital, que “pode expor ao risco de dependência, isolamento e progressiva perda do contato com a realidade concreta”, Francisco aponta o grande valor social do cinema como meio de agregação e educação e vê no neorrealismo uma lupa que “toca a realidade como ela é”, cuida dela e, portanto, “se relaciona”.
Ver é um ato que é feito apenas com os olhos”, destaca, “para olhar precisa-se dos olhos e do coração”. Francisco explicou que os filmes neorrealistas não são documentários que dão um simples registro “ocular da realidade; eles a devolvem, mas em toda a sua crueza, através de um olhar que envolve, que move as entranhas, que gera compaixão”. Para o Papa, é “a qualidade do olhar que faz a diferença, antes como agora. O olhar neorrealista – acrescenta – não é um olhar de longe, mas um olhar que se aproxima, que toca a realidade como ela é, que cuida dela e, portanto, que se relaciona com ela”. Um olhar – continua – que “transforma a realidade”, porque “não é um olhar que o deixa onde você está, mas um olhar que o leva para cima, que o levanta, que o convida a se levantar”, perto dos últimos. Um “olhar que na escuridão preserva o sabor e a sensação de luz”. É um olhar de desvelamento”: capaz de mostrar passagens “onde vemos apenas um limite”, “abre brechas nas barreiras, vê os sinais de uma realidade mais bela e maior”.
Preservar a memória através de imagens
Por fim, o Papa enfatiza a necessidade de sermos bons guardiões da memória através de imagens, a fim de transmiti-la a nossos filhos e netos; e ele amplia o discurso além da esfera estritamente cinematográfica para incluir fontes audiovisuais como um todo, como testemunhos preciosos do passado. “Trata-se – afirma – de documentos com um caráter intrinsecamente universal porque transcendem as fronteiras linguísticas e culturais e podem ser compreendidos por todos com imediatismo. E anuncia que está pensando em “uma instituição que funcionaria como Arquivo Central para a preservação permanente, ordenada segundo critérios científicos, de um fundo histórico audiovisual dos organismos da Santa Sé e da Igreja universal. Poderíamos chamá-lo de ‘Midiateca’, junto com o Arquivo e a Biblioteca, para a coleta e conservação do patrimônio de fontes audiovisuais históricas de alto nível religioso, artístico e humano”.